quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Ninguém me liga

 Ninguém me liga nada. Nem uma chamada, nem uma mensagem de SMS, no MSN,  no uótessape ou somente um láique na foto do prato de lentilhas que publiquei no feicebuque

Estou somente eu, olhando uma caixinha com um vidro fino, que outrora nunca sonhei ter e que não faço a mínima ideia de como funciona internamente. Deslizo o indicador sobre o que não me interessa, carrego no que me chama a atenção, uma foto duma amiga com fundo de mar, um vídeo de apanhados, o André Ventura  a arrasar um comuna,  uma frase dum poeta, um produto muito em conta para compra oneláine e porque não estou sempre nisto, desço as escadas para abrir a caixa de correio.

Nada. Não digo a fatura da água ou uma carta das finanças, mas ao menos um panfleto de aparelhos auditivos, um comunicado do presidente da câmara ou um desdobrável das Testemunhas de Jeová! Faz muitos anos que não recebo uma carta ou um postal dum amigo a dizer "espero que estejas bem que nós por cá todos estamos bem graças a Deus".

Ninguém me liga nada!  Nunca fui de igrejas, nem de partidos, nem de causas, teatros, futebóis ou associações! Não sou de livros, não percebo os escritores nem o que eles escrevem. Hoje em dia a música é só barulho, o cinema é só tiros e putedo, Cristinas Baiões Gouchas e Quitérios é só maricagem.

Família? Chega uma vez por ano no Natal! Falam, falam, falam e ninguém liga nada ao que eu digo.

Vou ao supermercado, três produtos para não ter de comprar saco. Um fingiu que não me viu, outra acenou-me apenas a cabeça, não encontro ninguém nem para um, nem para dois, nem para três dedos de conversa. O jovem da caixa disse-me com simpatia, nos devidos tempos, bom dia, quatros euros e quatro cêntimos, bom dia e obrigado.

 Ninguém me diz nada. Tocam à campainha: 

- Era  só para lhe dizer que deixou o vidro do carro aberto!

- Só isso? E não me quer dizer mais nada? - digo para comigo enquanto digo "obrigado".

Sento-me e tento reanimar-me. Sinto-me jovem. Só me sinto bem ao telemóvel!


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Os livros não voam

Sempre simpatizei com ladrões de livros. Se um livro não é lido, mais vale que seja roubado.

Tendo passado um bom bocado de vivência, escorreita e banal, com a historieta doméstica do meu desaparecido berbequim Bosch, insisti no teste, mas agora com um livro.

O berbequim demorou três anos a desaparecer do muro de entrada do meu quintal, onde foi pousado. O livro, porém, pousei-o junto à vieira, cartão de visita da casa, e não sobreviveu lá três dias!

Dizem as línguas que comigo coabitam que já ninguém rouba livros; dizem que voou. Ora, é das leis da física que, se os porcos não voam, os livros também não; quando muito, podem-nos fazer voar.

Por outro lado, as leis da República proíbem a publicidade dissimulada. Mas o livro tem de vender!


sexta-feira, 17 de outubro de 2025

A cabeça do berbequim


Em 2022 publiquei aqui um texto com o título O teste do berbequim. Para quem não se quer dar ao trabalho de seguir a hiperligação para mais uma leitura, contarei, em resumo, que abandonei - pousei, coloquei - um berbequim avariado no muro de entrada do meu quintal, com três propósitos: testar se passavam ladrões à minha porta; testar se as pessoas me estimavam a ponto de me alertarem de que me tinha esquecido ali do berbequim; e testar se o conjunto - o muro de pedra antiga, a máquina de bricolage ao relento e a envolvente - poderia configurar uma instalação artística capaz de captar as sensibilidades de amigos que apreciam essas dimensões do visível.

Os meses passavam e ninguém me levava a peça, julgando-a funcional; ninguém me alertava para o suposto esquecimento da cabeça que ali a deixara; ninguém me dirigiu um comentário sobre o facto de o berbequim ficar ali mal ou ficar ali bem.

Até que, ao fim de três anos, o súbito desaparecimento do aparelho agitou o agregado familiar. Teria sido "o de mau aspeto" que deixara a última encomenda? O cão zarolho da vizinha, que o confundiu com presunto? Uma visita amiga que quis brincar e o levou para o seu muro, esperando que, quando eu lhe retribuísse a visita, nos ríssemos em coro da surpresa? Pensou-se em muitas hipóteses, mas, claro, sem dramatismos - já era tempo de acabar com a história que, de tantas vezes contada, já perdera a graça.

Eis senão quando, e apesar da dieta, não resistindo ao convite do meu vizinho Zé Luís para provar a sua água-pé nova, dou de caras com o Bosch verde, num novo poiso e numa nova morada.

- Então, porque é que trouxeste o meu berbequim para aqui?
- Para ver se lhe conseguia tirar a cabeça, para aproveitar para outro!

A pureza e a autenticidade da resposta desarmaram-me. Eu nem sabia que os berbequins tinham cabeça! Nada do que era previsto aconteceu e a peça teve o seu melhor destino: foi parar às mãos de alguém que ainda lhe poderá dar algum proveito.

Mesmo que acabe por permanecer mais anos do que no muro, tenho de reconhecer que, como instalação, está muitos pontos acima daquela que ousei criar. 

(Listagem: berbequim Bosh, pedaço de sabão azul, tábua de cozinha, esparavel, isqueiro, lanterna, sobre prateleira de mármore de Estremoz e cobertura de duas águas em chapa da sucata.)


sábado, 11 de outubro de 2025

Porque ninguém se preocupou com as maças!


- Filho, se tiveres fome, podes roubar fruta, mas nunca roubes uvas, porque dão muito trabalho e são para fazer vinho!

E nós andávamos por lá, ao Deus dará, saltando regatos, espreitando ninhos, descobrindo buracos e paladares dos vales. Qualidades de maçãs não tinham conto: de três ao prato, de inverno, do pipo, de esmolfe, bravas, verdeais, azedas, camoesas, reinetas, riscadinhas, eu sei lá! Golden? Isso é nome que se dê a uma maçã? Isso é uma apple!

A desertificação dos meios rurais, a praga dos incêndios e a sociedade do rentável acabaram com dezenas de espécies de macieiras. O desaparecimento de numerosas qualidades de maçã, que não se enquadraram na obrigatória cultura do pomar, de curas químicas e câmaras de frio, ou nas calibragens e brilhos comerciais, condenou-nos à nostalgia dos sabores.

Mas que prazer pode ter uma criança de hoje em roubar fruta se tem uma mãe que lhe descasca e parte em quatro a maçã Golden, e há na mesa da sala uma taça com fruta de plástico?

E assim chegámos aos tempos em que somos indiferentes a tudo menos à diferença.

Que se lixem as maçãs de antigamente e, se para vencer os mongóis for necessário o apocalipse nuclear, que venha ele e que a gente morra logo, para não ter de sofrer com ele. Seja como for, a morte é certa e, se já não pode haver maçãs com bicho, está tudo perdido.

Há meia dúzia de anos era assunto central a preservação do ambiente, a ecologia e o aquecimento global. Os governos da “Europa” rica, a reboque das opiniões públicas, anunciavam medidas, canalizavam milhões e prometiam um planeta verde sobre azul.

Num abrir e fechar de anos, as opiniões públicas, a reboque dos governos da pobre “Europa”, já se estão marimbando para o plástico, a poluição e o calor. Não faz sentido falar nisso em tempos de guerra, de fumo negro, de destroços e de enterros. Ah! E depois de 80 anos a dizer Nuclear Não, se tiver de ser, que experimentem lá essas bombas maravilhosas! Afinal de contas, Hiroshima e Nagasaki continuam a ser cidades, e os generais desse crime não perderam as  medalhas!

Que se lixem as maçãs de antigamente e, se para vencer os mongóis for necessário o apocalipse nuclear, que venha ele e que a gente morra logo, para não ter de sofrer com ele. Seja como for, a morte é certa e, se já não pode haver maçãs com bicho, está tudo perdido. (Este parágrafo foi propositadamente repetido.)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Trumpanalho para não dizer outra coisa.

Os políticos das passadeiras made in EU, o Pastel de Belém, o Bola de Berlim, o que se engravata à grande e à francesa no Eliseu, os opinadores de circunstância ou de profissão e a sempre chamada opinião pública, tremem entre as pernas porque há um novo ator na Casa Blanca, um energúmeno que confunde o Pentágono com a estrela hexagonal, tão perigoso que é capaz de mandar incendiar Roma e o mundo. 

Mas se toda esta gente sente esse perigo, porque é que se entusiasma sempre que ele saca do poderio militar para atacar ou ameaçar algum país ou pessoa de nome maior tida como pagã? 

- Venezuela? Dá-lhes! Irão? Dá-lhes! Palestina? Dá-lhes! Rússia? Isso é que era! Que seja! Ficaremos então todos unidos à volta de Trump na solução final!

O desenho do figurão tem tal sucesso que, em todas as chamadas democracias, alguém se encarrega de carregar, alimentar e engordar o seu trumpezinho. Eis ao que chegámos: a esperança para o mundo está em Trump e em Portugal está no Andrézinho.

Últimas notícias:  Trump consegue a paz entre a Palestina e Israel, o mundo felicita Trump - Trump, Trump, Trump, Nobel da Paz.

Só falta mesmo ouvir o meu vizinho a dizer-me que, no domingo, vai votar em André Ventura porque viu num cartaz que ele é candidato aqui na terra.

(Legenda: Deus existe e eles viram-no)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A sorte é sempre oportuna


Cajó sempre brilhou na sorte.

A primeira vez que me pediu favores foi quando nos estávamos a preparar para a oral de Português do 7.º ano do liceu. Não sabia nada; só tive tempo para lhe explicar a Proposição do primeiro ao último verso, quando era certo que Camões poderia ser questão — desde o Concílio ao soneto do “fogo sem se ver”. Fui o primeiro a prestar prova e espalhei-me completamente com o Adamastor, mas acabei por passar. Cajó foi aprovado com distinção. À saída, só tive uma palavra para ele: cabrão!

Aprovados, e porque era chegada a idade de passar uma noite em Lisboa para estudar a cidade, juntámo-nos ao Joca, que tinha sido dispensado da oral e tinha uns tios emigrantes, proprietários de uma casa na capital onde poderíamos pernoitar.

Na festa de 8 de setembro, apresentei-lhe a Jaqueline, filha de vizinhos emigrantes em Champigny. Cajó conseguiu passar-lhe a ideia de que percebia alguma coisa de francês, respondendo a tudo com “ça fait rien”, incluindo quando ela revelou que era prima do Joca.

Jaqueline disse:
— Amanhã vou para Lisboa, os meus pais têm lá um apartamento!

Cajó aproveitou a oportunidade, encaminhou a conversa e vestiu-se de vidente. Começou a descrever, com surpreendente pormenor, entradas, escadas, divisões, camas, quadros e azulejos, atirando a jovem, perplexa, para sentimentos de admiração e encantamento.

A minha intervenção de desmascaramento precipitou o fim da nossa amizade. Contaram-me que, na recruta, ganhou fama porque, no primeiro disparo que fez, acertou no centro do alvo sem se servir da mira, passando a auxiliar do sargento na instrução de tiro.

Revi-o na praça esta semana, e cumprimentámo-nos com saudade da juventude. Disse-me ele:
— Naquela noite fiquei com conhecimentos de francês a dobrar! Ela era do quatre-vingt-quatorze!
— Continuas o mesmo!

Na praça, apareceu em campanha o candidato do partido sem vergonha, devidamente acompanhado por outros que também perderam a vergonha.

Cajó virou-lhes as costas e, sem se preocupar que o ouvissem, disse-me:
— Filho da puta!

Não me atingiu; de costas e com um só tiro, atingiu um bando inteiro: viraram-se todos.



sábado, 27 de setembro de 2025

Saiu-me pior que a encomenda

 Conversa no messenger:

- Como faço para encomendar o livro?

- Teré téu téu! 

- Teré téu téu.

- Por transferência, mbway, uma nota de 10 num envelope pelo correio ...

- Morada - xxxxxxxx

Nem queria acreditar! A 200 metros de mim em linha reta, um pequeno quintal, um muro alto, um  portão alto, uma casa entre casas, deixa-se ver apenas o telhado e uma janela de águas furtadas. Podia lá ir eu, diretamente, colocá-lo na caixa do correio. 

Mas não. Gosto dum pretexto para ir à vila, entrar na estação, tirar a senha, acenar a cabeça a um conhecido, fixar um rosto que ficará retido na memória e deixará de me ser cara estranha, apreciar os movimentos do espaço e do balcão, uma envia um vale de correio, um casal trata dos seus certificados de aforro, uma idosa levanta a reforma, um logista levanta uma encomenda. Topo os livros... 

- Não nos bastavam os supermercados e as feiras de artesanato a venderem livros, agora até os CTT já vendem livros! Os livros compram-se nas livrarias ou encomendam-se ao autor pelo correio!

Chega a minha vez. Levo sempre o dinheiro trocado, 56 cêntimos se for um, 1 euro e 12 cêntimos se forem dois, 1 euro e 68 cêntimos se forem três. O funcionário esboça um sorriso aliviado por não ter de fazer o troco.

Adelaide Silva. Há anos que a vejo sair do carro para fechar ou abrir o portão enquanto aguardo que a rua fique desimpedida, é então que tenho oportunidade de espreitar para o pátio e conhecer um rasgo do território que está para lá do muro alto. Entra novamente no carro, quase sempre desprezando-me  embora, algumas vezes, já sentada no habitáculo, me deixe dúvidas se ajeita o retrovisor ou me acena com um obrigado ou um desculpe.

Ou então embirra com a minha cara de homem que, desta forma, já lhe conhece bem os traços e os jeitos para a reconhecer, ao longe, no areal da Figueira. Os homens daqui são assim, muito machos, ler livros para eles é coisa de mulheres.  Elas leem mas não vão dirigir-se a uma cara que tão bem reconhecem pela caricatura da capa - comprava-lhe um livro mas ele é um trombudo!

Ora essa! Nas palavras cruzadas diz-se que "não fazem milagres" e eu convivo bem com isso! Aliás, nem sei bem onde enfiar o olhar, a próxima vez que vir a Adelaide.

Herdou a casa, já me tinham dito. Era bailarina, teve um entorse ou as pernas não davam mais e veio refugiar-se aqui entre muros. Sabe-se que quando se ausenta, deixa o portão fechado a cadeado e vai a Lisboa para se atualizar, cuidar-se ou passear.

Deve ler muito para, não sei porque meandros, me encomendar um "homem". Duvido que sonhe que vivemos a 200 metros um do outro em linha reta. Desvendar a coincidência, tal como desenvolvermos conversa, seria embaraçoso. Por isso, de meu preceito, escolhi o caminho mais fácil, fui aos correios à vila para enviar um "homem" para uma vizinha. 

10 euros, incluindo 56 cêntimos, mais gasolina e envelope com remetente para devolução em caso de problemas com o destinatário. Estraguei tudo! Ontem abri a caixa de correio e tinha um bilhete: 

"Gostei muito! Gostaria de trocar umas palavras consigo sobre o homem que me persegue. Toque na sineta que está ao lado do portão."

E agora?


 

domingo, 21 de setembro de 2025

34- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

Isto cheira-me a epílogo! Será?

- Obrigado Tintaine, ainda bem que me fazes essas pergunta. 

Sim, acabou. Tudo se precipitou no último capítulo: as personagens pareciam implorar que fossem libertadas da história para viverem a sua vida em paz, o autor interrogava-se no "vale a pena?", a pena começou a estender tudo o que lhe sobrava de ideia, os acontecimentos começaram a suceder-se com extrema rapidez e zás - Fim, Epílogo, Acabou ou como queiramos dizer.

Tinha previsto que o último número do folhetim, fazendo justiça à intenção inicial, tivesse, mais ou menos, o conteúdo que agora teço, mas confesso que se não fosses tu, Tintaine, já não me punha ao teclado.

Agora, entrámos na fase em que os carateres foram copiados para um documento word, e tudo vai ser cozinhado para ser servido como livro. Vão ser retocadas e enriquecidas as personagens, vai ser verificada a coerência do argumento, acrescentam-se reflexões, pensamentos e ideias, enfim, lá para verão, haja saúde, espero ter no prelo mais um objeto livro de papel.

Se para além de ti, alguém deu pelo fim e não se manifestou, é uma pena porque é sempre bom saber que anda alguém do outro lado. Se foste só tu, também valeu a pena. Seguido ou não, tenho sido compensado pelas vendas em papel que, embora poucas, me deixam satisfeito e motivado a continuar.

Vou continuar por aqui. Abraço.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Conversa de teimosos

- Segunda feira vim ali à farmácia, estava fechada e pensei vir aqui, mas olhei e também estava fechado por ser segunda feira.

- Não, estava aberto.

- Mas olhe que eu vi a porta fechada.

- Deve ter reparado mal porque estava aberta.

- Olhe dê-me mas é uma imperial!... Mas você não fecha à segunda feira?

- Não, fecho ao domingo.

- Mas dantes fechava à segunda feira!?...

- Não, sempre fechei ao domingo.

- Ia dizer que tenho quase a certeza que já estive aqui ao domingo.

- Está enganado, provavelmente era segunda feira.

- E não houve uma altura em que isto estava fechado à segunda feira?

- Não, meu amigo, já lhe disse, que o dia de folga desta casa sempre foi ao domingo!

...

- Olhe, traga-me mas é outra imperial! Aquela que eu era para ter bebido na segunda feira!

- O senhor não costumava vir aqui com o Abílio?

- Qual Abílio?

- O senhor nunca esteve aqui com o Abílio?

- Deve estar a confundir-me porque eu não me dou com Abílio nenhum.

- Mas olhe que eu havia de dizer que já o vi aqui a beber umas imperiais com o Abílio.

- Não, não era eu, não tenho nenhum amigo com esse nome.

- Tem a certeza que nunca aqui entrou com o Abílio?

- Meu caro amigo, até lhe digo mais, eu não conheço ninguém que se chame Abílio!

- Que se chame não, mas que se chamava! Lembrei-me agora que na segunda feira estive isto fechado um bocado para ir ao funeral do Abílio da farmácia.

- Ah  ele chamava-se Abílio?!

Bar na Ribeira Seca - S. Miguel



domingo, 7 de setembro de 2025

33- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


17 de junho de 2017 foi um dos dias mais trágicos da história de Portugal. As gentes do Pinhal Interior - que já devia ter mudado de nome para Eucaliptal Interior - há algumas décadas que se habituaram aos incêndios e aos rastos que deixam. Mas, nesse dia, o inferno do fogo matou muita gente e o epicentro da morte, foi a freguesia de Vila Facaia, concelho de Pedrogão Grande.

Depois desta terra ter entrado na história, trazido ao texto este dia, seria de engenho fácil, desemaranhar a corda do argumento e dar o nó final à “incrível história dum casal a quem calhou o euromilhões” com o fim incrível: morreram ambos no incêndio de Pedrogão Grande.

Sim, Jacinto e Francisca viveram a tragédia, faziam parte da vida de alguns dos que morreram, mas não vamos, desrespeitosamente, enfiar aqui o assunto como mero exercício criativo, antes iremos fazer a abordagem como forma de honrar a memória dos que então pereceram e a dor dos que sobreviveram.

Quando viram o fumo a nascer a montes de distância, nunca pensaram que, passadas horas, o iriam cheirar, veriam pousar as primeiras fagulhas, avistariam as chamas vivas a transpôr o horizonte do cume de Sarzedas, sentiriam o estalido infernal dos salgueiros quando atravessaram a Ribeira do Outeiro, sofreriam o pânico de ver o senhor dos infernos a entrar no seu quintal.

Nessas horas de aflição os corações batiam forte, se é que batiam, corria-se muito e, às vezes, era absolutamentente necessário uma pessoa sentar-se numa cadeira, num muro, numa pedra, no chão. Ninguém tinha a roupa lavada e as lágrimas enlameavam os rostos sujos. Todos ralhavam e ninguém se zangava, todos falavam e ninguém acertava, todos amparavam e ninguém sentia amparo. Noutros anos, no fim do fogo sentia-se tristeza mas também alívio mas, desta vez, a tristeza trespassou a terra queimada e matou entes queridos, no lugar de alívio deixou o peso do luto.

Para Jacinto e Francisca, este dia mudou mais a sua vida do que o dia da sorte grande. Jacinto daria todo o dinheiro que tinha para que aqueles montes e vales voltassem a ter o verde que tinham quando era criança. Francisca daria todo o dinheiro que tinha para que aquela gente não tivesse morrido.

Nos dias que se seguiram, diziam estas coisas um ao outro, fizeram voluntariado com os outros, abriram a carteira mais do que quaisquer outros, deram de si o que os outros não tinham.

Até que receberam o telefonema do banco onde tinham a conta mais corrente informando-os que tinham passado um cheque sem cobertura. Bem que sabiam que a notícia do grande incêndio que viveram tinha corrido mundo e, por isso, estranharam a ausência dum telefonema da Lúcia a perguntar-lhes se estavam bem. Percebiam agora porquê. Em poucos dias ela, o italiano ou o italiano e ela, tinham dado o desfalque na conta a que lhes deram acesso, três milhões tinham voado, restavam-lhes apenas cento e vinte e três e restava-lhe também o orgulho do tacto que tiveram ao não abrir toda a verdade à filha única. Esta, nem sequer se atrevera a ligar para saber se os pais estavam bem, porque estava convencida que lhes tinha desviado, ou derretido, todo o valor do prémio.

Descoberto o imperdoável que, podemos concluir, pouco os afetava em termos de extrato, também os pais não telefonaram à filha a pedir explicações, ela um dia haveria de vir pedir batatinhas. Aliás, uns tempos mais tarde, na sequência dum telefonema para o Abílio, viriam a saber que, segundo informações do Paleco, também emigrado no Luxemburgo, a Lúcia, depois dum período pródigo, estava novamente na miséria. Costuma ser assim, os novos gastam tudo como se fossem morrer amanhã e os velhos poupam como se vivessem para sempre.

Ao mesmo tempo que estava provado que o que tinham nos bancos não podia ser confiado à herdeira, era também assumido que não tinham nascido para serem ricos e que não tinham competência para gastar tanto dinheiro, além de que, não o esqueçamos, continuava a ser extremamente perigoso alguém saber da sua fortuna. Foi esse perigo, aliás, que deu o mote a esta história, o medo permanente que as duas personagens principais carregam, de alguém lhes encostar uma faca ao pescoço, uma pistola à cabeça, uma motosserra ao sexo e os ameace com a alternativa:

-…ou o dinheiro!

Encontraram então, por estes dias de notórias necessidades para tantos daqueles que os rodeavam, uma forma altruísta de aliviar a carteira e o coração e fazerem alguma coisa enquanto não morrem, como fizeram os que nesta se foram, acreditemos para conforto nosso, para melhor.

Começaram por um vizinho que tinha ficado rigorosamente sem nada depois do fogo ter passado.

- Joaquim, graças a Deus que temos algum dinheiro que não precisamos e podemos ajudar-te no que precisares, exigimos-te, em troca, apenas duas coisas: que não plantes eucaliptos e que guardes absoluto segredo de que fomos nós que te ajudámos. Nem à tua mulher podes dizer, ouviste Joaquim?

Outros joaquins e joaquinas se seguiram e receberam o que precisavam, sendo que a todos foi exigido igual sigilo, tendo chegado ao ponto de já não haver pedreiro para tanta obra nem plantadores para tanta árvore. O segredo era particular e coletivo ao mesmo tempo. A maior parte dos contemplados teve de inventar mentiras acerca da origem da ajuda e, a certa altura, todos tinham emprestado a todos e ninguém tinha emprestado a ninguém.

Francisca e Jacinto assistiam a tudo isto com um enorme prazer: eram recuperadas casas e anexos, eram plantadas árvores em encostas e charnecas e, no que toca a mentiras sobre origens de dinheiros, já não estavam sós. À medida que o branco do casario renovado se espalhava e o verde da nova floresta se estendia, iam ganhando consciência da dimensão do montante do prémio do euromilhões que tinham recebido e que o melhor destino que lhe podiam dar era distribuí-lo, semeando felicidade e aumentando, desta forma, o seu valor. Comprovava-se assim que o dinheiro, traz felicidade e que foram os ricos que espalharam o dito do contrário para os pobres não os invejarem.

Esqueçam esse bla, bla, bla, que tantas vezes ouvimos, que se me calhasse que dava tanto a este, tanto prá ali e investia o resto. Tretas! 

Burros aqueles que correm a jogar quando há jackpot como se não lhes chegasse o prémio duma semana normal.

Lorpas aqueles que esperavam que a história tivesse um final incrível, com Francisca e Jacinto a dar tudo num gesto registado em pedra de benfeitores duma causa justa, num investimento empreendedor que os tornasse ainda mais ricos, ou a acabarem ainda mais pobres do que eram antes.

Fica provado que saber o que fazer a tanto dinheiro, nem em ficção é fácil. Ficamos portanto assim, na normalidade em que se dão os destinos das vidas que não se contam em livro: o casal Jacinto e Francisca, vivem normalmente a sua pacata vida, com problemas de dinheiro, como toda a gente, apenas com a pequeníssima diferença que o problema de dinheiro deles é dinheiro a mais.

Também não vale a pena estar aqui a moer palavras, à espera que passem anos, para sabermos o que lhes acontecerá futuramente: morrerão.

A Lúcia, se quer vir a tempo de herdar alguma coisa, que venha, peça perdão e, se vir este livro à venda, compre-o e diga-me alguma coisa, dê-me um sinal de que o leu que é a melhor recompensa que quem escreve pode receber, sabendo de experiência que é raro, quando não impossível, as personagens a si próprios se lerem. Ligue-me, ter o meu número é já em si uma prova de que o leu.

Os locais e os nomes das pessoas são verídicos. Também é verdade que saiu o euromilhões a um casal e que foi escrita a história dum casal a quem saiu o euromilhões. Assim sendo, a única coisa que aqui pode ser posta em causa é se esta história foi ou não incrível.

Digamos ainda que, lá por isto ter sido tudo inventado, não quer dizer que não seja auto-biográfico.

07/09/2025

Vila Facaia



domingo, 31 de agosto de 2025

32- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 

Jacinto e Francisca viajaram de táxi e só se fizeram anunciar quando já estavam na receção do hotel a registar a entrada. Recordemos que estamos no mesmo hotel onde há uns meses não foram admitidos, sabemos bem porquê, o que vem revelar ao enredo que o nosso casal mudou significativamente o seu visual e passaram a ter um aspeto mais à altura destes ambientes e locais.

Daqui a poucos minutos ligariam à Lúcia e, passados mais uns minutos, teriam a família reunida e iriam almoçar àquele restaurante. Era este o plano. Pelo meio teriam de surgir os esclarecimentos da situação em que se encontravam, esclarecimentos que, estamos de acordo, não podiam conter toda a verdade. Vamos lá a ver se a conversa corre, nos termos combinados durante a noite, já que no caminho não puderam falar disso por causa das orelhas do taxista.

Os hóteis pequenos são como as terras pequenas. O encontro dos cinco deu-se assim: no elevador.

Ouviu-se pelos corredores dos quartos o ruído do baque, saíram do elevador pois claro, ficaram ali a trocar-se de cumprimentos e coincidências, ninguém estava no piso certo, ninguém podia dizer vamos para aqui falar, havia que encontrar portas, em conclusão o primeiro encontro foi curto e embaraçoso.

- Encontramo-nos na receção daqui a um quarto de hora. Depois falamos. Almoçamos.

Nem uma linha se escreveu mais durante estes quinze minutos. Assim que se reencontraram, como seria de esperar, todas as atenções se viraram para a menina, a Céline. Já no exterior, no passeio ventoso da marginal, a questão que não poderia esperar pelo almoço, fez-se, nua e solta:

 - Que história é essa do pai estar preso e de terem dinheiro para hóteis? Calhou-vos o euromilhões?

A pergunta não era para ter resposta imediata, esta informação era para ser dada em cautelosas prestações, aos bocadinhos, aqui e ali com meias verdades, à medida que  a conversa se fosse desenrolando. Mas o dedo intuitivo da filha apanhou-os de surpresa. Como é que ao longo destes meses, de todos os outros que haviam tentado identificar a fonte que alimentava a sua carteira,  não tenha havido ninguém a levantar essa hipótese? E foi assim que uma palavra, pequena, doce e calma, se soltou num voo leve e natural da boca da mãe Francisca:

- Sim!...

A brisa marítima amaciou o ambiente. Afinal foi um parto sem dor. Sim. Sim, é normal quem joga poder receber um prémio. Tão normal, como não se saber o valor do património financeiro da maioria das pessoas, é o montante dos prémios recebidos não ser público.

Durante o almoço seria explicado porque inventaram mentiras e nunca revelaram a verdade em Vale dos Ovos.

- À volta de três milhões!... 

Mentira! Nem a filha podia saber toda a verdade! Continuação da conversa:

 A terra do pai; algum será para ti; o teu companheiro entende o que dizemos; a Céline, está a perceber alguma coisa; se concordarem ficamos aqui uns dias!...

Ao fim de três dias já estavam fartos uns duns outros.

Foi sobre uma conta de três milhões que partilharam a titularidade com a Lúcia, o suficiente para esta presenciar a reverência com que os pais eram tratados pelos funcionários do banco. Assim que se viu com o nome na massa, Lúcia anunciou que regressaria no dia seguinte ao Luxemburgo com a família. Partiu sem saber da missa a metade, inclusivamente sem tomar conhecimento da residência atual dos progenitores, ficou a saber que ea a terra natal do pai e mais nada. A ligação entre pais e filha só ficou mais reforçada porque, desta vez, ficou gravado o contacto telefónico e o indicativo internacional.

O comportamento e os olhos do italiano sofreram bruscas alterações, assim que este percebeu que a companheira passara a ter acesso a uma conta bancária milionária. Francisca e Jacinto perceberam bem isso, assim como perceberam que foi por sua iniciativa que decidiram partir precipitadamente.

Quando se despediu da família migrante, o nosso casal sorriu e um dos dois disse:

- Ainda bem que não lhes falámos dos outros cento e vinte e três.

Morta a curiosidade de quem queria saber quanto, e note-se que fica a saber mais do que os potenciais herdeiros, vamos de novo para Vila Facaia viver a vida como os demais.

Entretanto a mãe de Jacinto ficou com uma doença, que tem um nome de que ela nunca se lembra e foi para um lar. O irmão deficiente de Jacinto, de tão feito que estava à mãe, também foi para o mesmo lar. Outra informação: a casa da Pedra de Ouro foi vendida e o dinheiro da venda foi oferecido ao lar.

Francisca e Jacinto formavam um casal querido na Vila e arredores: falavam pouco da vida dos outros e pouco se sabia da sua vida, davam-se bem com toda a gente, os cordões da sua bolsa desatavam-se para tudo o que era peditório, oferenda, angariação, sorteio, contributo, necessidade.

Está a fazer um ano daquela atribulada viagem ao edifício da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, na Avenida da Liberdade, acabámos de revelar o montante do prémio, vamos agora apontar que no calendário amanhã será o dia 17 de junho de 2017.

domingo, 24 de agosto de 2025

31- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 

Digamos que é mesmo muito dinheiro e que, pelo que pensava Francisca quando há pouco a deixámos na sua cama da casa de Pedra de Ouro (Aproveitamos para anunciar que a casa está à venda – 965347974) – a maior parte dele descansará por muitos anos nos cofres virtuais da banca capitalista.

Dentro de dias, Francisca chegará de malas cheias a Vila Facaia, voltará a juntar os trapinhos com Jacinto, viverão como dois emigrantes que regressaram de vez do Canadá ou da Austrália - já nem se recordam de onde disseram que foi! - com um valente pé-de-meia.  Juntos, cuidarão da sogra e do cunhado, viverão.

Para trás, ficará a casa de Vale dos Ovos entregue às silvas, a casa de praia entregue a uma imobiliária, o papa-reformas vendido a um pescador. Para trás, só não ficarão os bancos porque eles, tal como Deus, estão em toda a parte.

Dito e feito, vamos agora viver no Pinhal Interior (digo Eucaliptal Interior), casamento renovado e casa nova com Jacinto, amanhã vamos a Pedrogão ao Registo, no outro dia podemos ir à Sertã comer maranhos, ontem foram à praia fluvial das Rocas, foram a banhos, sempre de táxi, estão bem na vida - vê-se! -  trabalharam para isso toda a vida - pensam os santos da terra! -  temos de ir com a velhota a um médico à Pampilhosa, amanhã vamos à feira a Castanheira comprar um pijama para o teu irmão, ontem foram a um jantar da Associação, deram um generoso contributo, hoje estão numa de descanso, estão bem na vida mas…

Mas, há um erro grave que aqui se cometeu. Se fosse da parte do autor, haveria perdão, mas não, são Francisca e Jacinto que estão a cometer uma falha imperdoável! De tal modo grave que até o próprio autor se está a sentir mal com a situação:

Gaita!Filha é filha! Resumir a relação entre pais e filhos a comunicações telefónicas já é trágico, agora ficar-se por um telefonema pelo Natal, não ter um contacto da filha, não cabe na cabeça de ninguém, não tem perdão, digamos que deita por terra todo o argumento porque se traduz numa história mal contada. Como se não bastasse, estamos a falar da pobre Lúcia, a infeliz que é rica, por afinidade,sem o saber.

Com a consciência avivada por este desvio da narração, o nosso casal abriu a conversa sobre o assunto, com uma seriedade e uma profundidade que nunca lhe tinha dedicado.

- Não tarda estará aí o Natal! E se ela não liga! Ainda nem chegámos ao verão! É muito tempo!

- De certeza que o Abílio do café, que conhece toda a gente, nos há de arranjar o contacto do Paleco ou de outro que por lá ande, no Luxemburgo!

Por falar em Abílio, contrariamente à nossa manifesta intenção, temos de voltar a Vale dos Ovos e ao Café da Estação, porque acaba de entrar nele, em passo diligente, uma jovem mulher visivelmente transtornada.

- O que é que se passa Abílio? Quis fazer uma visita surpresa aos meus pais e cheguei lá a casa e está tudo ao abandono?

Falamos obviamente de Lúcia. No carro estacionado no parque da estação, ficaram a filha adolescente e o marido, adiante-se já, novo marido, que o outro correu com ele, já o devia ter feito há muito tempo, um bêbado que derretia tudo quanto ganhavam, este sim, um italiano que a ajudou a endireitar a vida.

Ao vê-la tão aflita, Abílio atalhou:

- Tem calma cachopa! Eles estão bem! Quer dizer, a tua mãe está!...

- Que aconteceu ao meu pai? Alguma tragédia?

- Tragédia não direi, está preso!

- Está preso onde?

- Na prisão.

- Matou alguém?

- Não, não se sabe bem o que ele fez.

- E a minha mãe?

- Como te disse a tua mãe está bem, parece que está a viver lá para os lados da Vieira! O Jápintas e o Pisca-pisca já lá foram, sabem onde é. Mas o melhor mesmo, é ligares à tua mãe! Sei que ela queria ligar-te mas, como eras sempre tu a ligar-lhe, nunca apontou o teu número. Há muito que aguarda por um telefonema teu.

- Obrigado Abílio, é isso mesmo que vou fazer!

E dizendo isto, Lúcia saiu no passo em que entrou, dirigiu-se ao automóvel e ao condutor:

- Arranca, eu indico-te o caminho, vamos para a praia.

- O quê?!

- Já te explico, agora tenho de fazer uma chamada!

Quando Francisca reconheceu a voz ao telefone, estremeceu de contentamento e, numa expressão contente, fez um aparte para o Jacinto:

- É a Lúcia!...

À medida que a conversa ganhou rumo, Jacinto foi observando, pelo zizaguear das caras que a companheira ia fazendo, que havia surpresas e novidades. Estava em Portugal? Vinha a caminho? Praia, Vale dos Ovos, Abílio, prisão. Novo marido?!...

Na outra ponta da comunicação telefónica, também o novo marido tinha as orelhas erguidas, mantendo calma a condução e espreitando, de quando em vez pelo retrovisor, para sondar a atenção da enteada. Não estava em casa? Então iam para onde? Não estava preso? Uma longa história, segredo, calma, praia, hotel. Está tudo bem?!...

 Francisca não podia esconder à filha que o pai nunca estivera preso. Também não poderia, pelo menos para já, revelar-lhe onde moravam. Era obrigatório que se encontrasse com ela o mais rápido possível, mas não tão rápido que não tivessem tempo para preparar explicações sobre os acontecimentos dos últimos meses. Isto é, Francisca foi desenrascando a situação como pôde. Dizer à Lúcia para se instalar com a família no hotel da Vieira, que não se preocupasse com as despesas, era, ao fim e ao cabo, uma forma de iniciar a grande revelação que teria de acontecer. Obviamente que a filha ficou muito confusa com o discurso da mãe – será que ela está bem? Pensou por várias vezes – e muito ansiosa pelo
reencontro da família. Os emigrantes foram dormir ao hotel da Vieira e aguardariam pelo dia seguinte para se reunirem com o casal. 


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

No Caminho

-  Quanto é que pagaste para te publicarem o livro? Foi muito caro?

-  Ganhas, ao menos, algum dinheiro com isso?

Questões clássicas que os mais atrevidos me colocam. Como se desconstruir os sonhos em palavras e gravá-las no objeto livro, tivesse de ser avaliado na fatura duma gráfica ou no somatório da coluna "receitas" duma folha de cálculo.

O que não sabem é que publicar um livro não é como apresentar aos amigos um móvel que se fez para a casa de banho, os livros são paridos, expulsam para a luz vida que já não cabe em nós.

Não, eu não paguei para publicar.  Paguei com horas de transposição para o teclado, pensamentos que se reuniram e formaram na parada da noite, soldados que sobre o meu comando desfilam nesta coreagrafia pretensiosamente literária ou, se quiserem, com mais modéstia, apenas uma história que se inventa e conta. Ganho por acreditar no prazer que pode gerar cada exemplar impresso nas pessoas anónimas que gostam de ler e no processo de realimentação - em inglês "feedback" - que algumas vezes recebo com um "tá porreiro pá".

- Hoje em dia qualquer um pode publicar um livro! Dizem-me alguns desvalorizando-me sem intenção.

E eu observo: 

Que mal há nisso que eu só vejo bem? Ainda bem que o livro deixou de ser apenas democrático do lado do leitor e passou também a ser democrático do lado do escritor.

Pronto, finalmente o Caminho do Fim da Terra chegou à FNAC online.

Para quem preferir pode sempre contactar-me que eu próprio o envio. Terei todo o prazer nisso.


domingo, 17 de agosto de 2025

30- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


Francisca foi ao frigorífico e preparou a refeição possível. Abriu um vinho, respirou com ele e pôs-se, aliviada, a fazer o ponto da situação:

A nova mentira, “Jacinto preso por tráfico de droga” – Ah! Ah! Ah! - está montada, lançada  e terá pernas para andar, até se perder, por todas as casas, quintais, ruas, vales, cantos e recantos de Vale dos Ovos e arredores. E, se não se perder, se alguém a descobrir, já não importa! Dificilmente descobrirão por onde anda o casal de traficantes de droga! E se descobrirem também já não importa!

Assim sendo, a primeira coisa a fazer é desfazer-se da moradia da praia, da qual gente de mais sabe da sua existência. Depois? Depois? Amanhã terá de ter uma conversa telefónica com o “assim, assim” marido para lhe expor o ponto da situação que está, agora mesmo, a fazer, com uma garrafa de tinto que já vai a meio. Dir-lhe-á: “pontos nos is”, “como é que é a nossa vida?”, “vou continuar contigo?”, “divórcio?”, “dinheiro? contas à parte? espatifá-lo? viver sem espalhafato? ”, “como é?…”.

Quando se apercebeu que esta reflexão começava a ficar turva, decidiu ir para a cama e adormeceu sentindo a falta do seu companheiro de sempre. Era inevitável, acabaria por mudar de residência para Vila Facaia. 

Aqui chegados, eis a pergunta que se impõe:

- É isto a incrível história do casal a quem saiu o euromilhões?

Pergunta à qual se acrescentam outras interrogações:

O que leva uma pessoa a pôr-se a ler um livro assim? Prazer pela leitura? O título interessou-lhe? Gosta do modo de escrever e de criar do autor?

Seja qual for a razão, é quase certo que, ao fim de cerca duma centena de páginas viradas, já questiona o interesse do enredo, abre a boca enquanto avalia a espessura do conjunto de folhas sobrantes e guarda para amanhã o esforço final de chegar ao fim, curiosa de, pelo menos, ver como isto vai acabar, se tudo bem – como Francisca acaba de pensar - se em tragédia, se morre alguém ou morrem todos, solução esta que é a mais prática e garante que é mesmo o Fim e que não haverá fio para mais uma temporada.

Quem não experimentou já ver um filme com pouco entusiasmo mas com suficiente curiosidade para ver o final e, aí chegado, ter de perguntar:

- Mas tanta coisa para isto? Tanto tempo para escrever o guião, tantos atores a decorar texto, tanto investimento na produção, tanta tinta, tanto gasto, para nos porem a ver isto?

No caso presente, informe-se quem esteja a passar por semelhantes sensações que, pelas mesmas passa agora o próprio autor, a braços com o dever de dar um sentido existencial à história, parágrafo a parágrafo, aumentando o volume do objeto livro, ansioso de chegar a uma clareira que lhe dê luz para o remate final dos acontecimentos e faça jus ao título que contém o termo “incrível”.

Afinal de contas, ao fim de tantas horas investidas nesta escrita, desistir seria doloroso, pelo que há que manter o ânimo e acreditar que esta história merece ser livro. Claro que merece! Aliás, até as pessoas que nunca leram um livro, acabam um dia por se descair e contar a alguém que a sua vida dava um livro! Tudo justifica um livro, ainda que possa ser muito pequeno. Haja quem leia! Isso já é outro problema!...

E já que estamos num intervalo de divagações, falemos também assumidamente, que há dados que ainda aqui não foram dados, de forma intencional, por técnica, estratégia, capricho ou inabilidade.

Por exemplo, em que anos se passa a história? Não sabemos se é importante mas, tirando umas por outras, podemos lá chegar. Certo que estamos depois de 2004, ano em que foi lançada a lotaria do euromilhões, e antes de 2025, que é o ano em que estamos.

Mas podemos esclarecer, porque chegou a altura, que desde o dia em que o casal confirmou a sorte, já terão decorrido nove meses, pelo que, medindo novamente a quantidade de páginas ainda não lidas, poderemos concluir que já temos pouco tempo, considerando como boa regra, que um ano chega para gestacionar uma história.

Deixamos também nota para uma questão que, porventura, andará presente em mentes mais materialistas:

- Porque tem permanecido omisso, até aqui, o montante exato, arredondado ou bruto, do prémio recebido?

E omisso continuará até ao fim, primeiro porque a dimensão do valor pode tentar o leitor a imiscuir-se no teor da narração e a tecer críticas às opções do autor, segundo porque não responder a essa curiosidade primária, poderá levá-lo a continuar a leitura até ao fim.

domingo, 10 de agosto de 2025

29- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


Quando o Pisca-pisca parou o carro e se apercebeu quem era a cliente, ficou com cara de tomate mas saiu do embaraço como pôde:

- Aquele Abílio vai pagar-mas, porque não me disse ele que eras tu!?

- Fui eu que lhe pedi, sabia que ias gostar desta surpresa!

A cara de tomate diluia-se nas rosáceas associadas ao exagerado consumo de cerveja, vinho e aguardente. No resto do dia, foi-se adaptando ao incómodo de ir ouvindo, em suaves prestações, a história da prisão de Jacinto. Surpreendia-o a naturalidade, para não dizer o prazer, com que Francisca relatava toda a história da prisão e do crime do companheiro de sempre.

A certa altura começou até a ficar convencido de que ela, agora sem o Jacinto, estava a precisar de peso e o desejava. Daí o pretexto do frete excecional, que preencheria toda a tarde e ainda incluiria o percurso até à casa de praia que, não saberia ela, mas ele conhecia.

Sabia, sabia, os videoporteiros modernos com gravador têm destas coisas, coisas de ricos! Ao longo da tarde foi descascando o “tomate”, com informações falsas e pequenas provocações: “sabemos que foi alguém daqui que fez a denúncia”, “como souberam que ele vendia erva de Marrocos e folhas da Colômbia é que eu não sei”, “o Abílio disse-me que não sabe quem foi mas desconfia”, “às tantas estou para aqui com coisas e tu sabes quem foi”, “já pensei no Jápintas!”, “vizinhos para quem ele andou lá a pintar há uns tempos, disseram-me que o viram a rodear a minha casa com outros dois”, “estou-me nas tintas para quem foi, o que interessa é que ganhámos bom dinheiro com o negócio e não tarda muito ele está cá fora outra vez!”

O desgraçado do taxista foi toda a tarde um autêntico farrapo nas mãos da conversa da tagarela reinante. Valeu a Francisca este divertimento oportuno para compensar a tristeza que de outro lado lhe vinha.

A sucessão de pequenos atos e diálogos que envolvem a despedida definitiva dum local onde se viveu por muitos anos, pode provocar transitoriamente estados de profunda tristeza, de choros incontroláveis, de saudade do passado recente ou até do presente. E nem sequer importa se partimos desta para melhor – salvo seja! - passam por isso os soldados quando passam à disponiblidade, os presos quando são libertados, os doentes internados quando têm alta, os emigrantes quando voltam de vez. O arrumar das botas e das malas, o embarque, os abraços, os adeuses, doem sempre muito, mesmo quando se deixam espaços onde não se foi feliz e se sofreu.

Francisca, por história de vida ou pelo menos por aparência, era uma mulher de armas e de sensiblidade robusta e viajou para esta despedida com a predisposição de quem vai ao mercado ou à feira, pelo que, foi apanhada de surpresa pelas lágrimas que por várias vezes, ao longo do dia, sozinha ou em companhia, expostas ou discretas, lhe irrigaram o semblante.

Quando, ao fim da tarde, deu ordem de partida ao Pisca-pisca e o táxi arrancou do largo da estação, correspondeu, através dos vidros do carro, aos acenos de adeus que Abílio desenhava, firmemente posicionado no portal de entrada do seu estabelecimento. Soltou um soluço final e dirigiu o olhar vazio para a estrada que se abria à sua frente, ignorando que ao seu lado havia um condutor que, apesar de todas as contrariedades, apesar de a ter acusado injustamente, ainda sonhava que ela o mandasse entrar quando chegassem à casa rica, que lhe oferecesse uma bebida e lhe abrisse a cama.

Enganou-se bem porque ninguém engana a Francisca. A sensibilidade feminina cheira à distância os desejos dum homem e foi assim que conseguiu um preço muito em conta, ao perguntar por contas antes de chegarem.

- Pode não ser nada, tudo depende do que tiveres em casa para me dares!...

Ela respondeu com um silêncio de desprezo e vingança que bateu com crueldade os intentos do macho.

Chegados ao destino, abriu a porta para ele descarregar na entrada a tralha que trazia, pagou-lhe sem gorjeta, deu-lhe um aperto de mão e, em tom de boa disposição, deixou-o ir com uma frase laminar de despedida:

- Espero que nunca ninguém ligue para a polícia a bufar que andas a conduzir com álcool.

Os candeeiros da rua iluminaram um tomate prestes a rebentar, protegidos da luz, os outros dois tomates desfizeram-se e engelharam as peles, nem sequer teve coragem para sair logo de Pedra de Ouro, desfeita a fezada, estacionou o carro junto a um arvoredo e dorminhicou umas horas para perder umas gramas.