terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Bom Natal! Estão contentes?

- Temos de fazer o presépio!... Temos de fazer o presépio!... Nhe! Nhe! Nhe! Temos de fazer o presépio!... Se vem alguém a casa!... Nhe! Nhe! Nhe! Temos de fazer o presépio!...

- Se o queres, fá-lo tu!
- Eu vou pôr a roupa na máquina e limpar a casa de banho!...
- Podes ir às compras que eu trato disso tudo!

(E isto já foi há 8 anos. Não é hoje que vou lavar roupa suja, e há um jarro que se enche no chuveiro e que substitui o autoclismo há 8 natais.
Estamos orgulhosos: inventámos um novo conceito de presépio, em que as figuras se movimentam pela casa - e somos nós. Temos a Nossa, o São, o Menino; a vaca e o burro sou eu. Além de burro, sou também rei, anjo, estrela, algodão, frio, pastor, ovelha - sou tudo eu. E a árvore é o grande carvalho do nosso quintal, para onde mando toda a gente que me chateia a cabeça.)




sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Uma ideia de prenda

O Natal dos nossos tempos cumpre-se com prendas. Quantos não vivem, nesta época, angústias por não saberem o que oferecer a determinadas pessoas? Mas que prenda é que eu vou dar a esta pessoa? Depois, o problema é que é difícil resistir à aparente inevitabilidade de ir ao centro comercial e engordar, com as nossas compras, o grande e insaciável “natal-capital”.

Por acaso, eu não tenho esses problemas. Para mim, prendas são garrafão de vinho, garrafão de azeite ou garrafão de literatura, adquiridos obrigatoriamente em mercados tradicionais ou paralelos.
O vinho e o azeite podem fazer mal à saúde; os livros, não.

Para mim, se não me oferecerem um livro, comprarem-me um ou dois já seria uma bela prenda.
Enviem-me a morada e ele vos chegará. Campanha de Natal — 10 euros a peça, incluindo portes.

Ou então compre na FNAC - online.







sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Nem todas as drogas são iguais


Toda a estratégia que países como Portugal têm seguido no combate à droga é um fracasso, porque nasce da ignorância e do preconceito, porque se apoia no desconhecimento e na arrogância, porque idealiza a vitória mas nunca o acordo, porque se dirige aos números e não às pessoas, porque privilegia a proibição e não a liberdade.

Não admira, portanto, que o Portugal da Europa dos “durões” e dos “costas” embarque nos porta-aviões com que os “guaidós” ameaçam de morte os bolivarianos, deixando para trás o direito internacional que tanto os escandaliza noutras fronteiras. O problema da droga, afinal, são os “maduros” que cavalgam os moinhos de vento de D. Quixote e o Sancho Pança que vende boliscos de burro.

Trago há muitos anos na memória esta história persa, que talvez nos ajude a pensar em não complicar o que é simples:

“Três homens intoxicados — respetivamente pelo álcool, pela heroína e pelo haxixe — chegam, durante a noite, às portas fechadas de uma cidade.
O alcoólico, tomado de raiva, grita: ‘Deitemos a porta abaixo. As nossas espadas conseguem fazê-lo sem dificuldade.’
‘Não’, responde o heroinómano. ‘Instalemo-nos aqui fora, descansamos até de manhã e logo veremos.’
O consumidor de haxixe, por sua vez, declara: ‘Que ideia mais absurda! Passemos todos pelo buraco da fechadura.’”

Não vou beber aguardente, não vou snifar, não vou fumar; quero só um copo de água. Estou cheio de sede: passei a tarde inteira a tomar banho na barragem, regressei a casa pelos cabos de energia e agora estou dentro da lâmpada da cozinha, sem conseguir sair. Alguém poderia concluir que bebi água demais, mas a verdade é que estou seco como um deserto e não sei o caminho para o interface entre a canalização elétrica e a canalização de água, para chegar ao lava-loiça e encher um copo. Vou partir a lâmpada, beber um copo de água e depois descansar — que é o que faço todos os dias. Será que ando drogado!?

Valha-me Santo Augusto Santo Silva! Tirem as mãos da Venezuela e enrolem um charro!


sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Querem acabar de vez com a segurança social

Quando não sei do telemóvel tenho uma técnica original e quase infalível que passo a revelar: pego noutro telemóvel cá da casa, ligo para o meu e pelo som consigo-o localizar. Normalmente ele revela-se em sítios normais como o bolso das calças, em cima do comando da televisão, ou até na minha mão. Mas também já aconteceu estar na gaveta das meias, na caixa dos estores da janela da cozinha e no sítio mais inesperado como na mesinha de cabeceira do quarto da vizinha. E ela, cínica, a bater à minha porta, a troçar do meu espanto:

- Mas como é que raio é que ele foi aparecer em sua casa se a senhora é nove um?!
- Deixe lá vizinho, se fosse o da sua esposa era mau sinal!
Ainda bem que a minha mulher não ouviu esta conversa, caso contrário teria ouvido mais uma discussão típica entre as duas:
- Cala-te que a tua gata é uma cabra!
- E a tua cabra é outra!
Mas quando me desaparecem os óculos, é que é o delas! Além de não dar para utilizar uma técnica, inteligente como esta, tenho dificuldade em vê-los sem os ter. 

Se, comprovadamente, estes desaparecimentos domésticos são sintomas de perda progressiva das minhas faculdades mentais, qual será a relação, que não encontro, entre os mesmos e a segurança social? É verdade que a segurança social participa no custo dos óculos e nos telemóveis não. Mas não deve ter sido por isso que me pus a escrever este texto...

Baixar a TSU, o IRC, a derrama e mais não sei o quê, oferecer pelo Natal um saco laboral e ainda sacar de mais uma aumento automático - agora são automáticos!!! - da idade da reforma, é o quê?  
 
Esta gentinha da esquerda da direita, da direita direita e da direita da direita não brinca com a segurança social, o serviço social ou o estado social, brinca com a nossa saúde mental!

A minha mulher diz: 
- Despareceram-te os óculos?! Ainda bem! Que assim não te vejo!

O meu vizinho, socialista e social democrata em alternância, diz que a segurança social vai acabar.

O filho do meu vizinho, que compra a roupa no pronto a vestir da classe liberal, diz que todo o serviço nacional que não dá lucro deve ser privatizado.

A minha vizinha, da direita coisa, diz que a Igreja assegura o Estado Social pela caridade e que deviam fazer com os contracetivos o que fizeram com o tabaco - impostos para cima! 

Mas está tudo doido?! 
Acham normal o telemóvel dum tipo aparecer na mesinha de cabeceira da   vizinha e a minha mulher não ter visto que eu tenho os óculos na cara, coisa que me apercebi agora mesmo?!

Acham normal que o analfabeto que foi meu companheiro de carteira da segunda classe se esteja nas tintas para a minha reforma, para a assistência social da minha tia ou para o tratamento da minha doença mental? E no final ainda tenha a coragem de me dizer que votou no André Ventura?!

Ontem fui informado que ultrapassei a idade da reforma e, como não a pedi na devida altura, já não tenho direito a ela! Eu tenho culpa de ter enlouquecido? 
Mas está tudo doido?!




sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Prefácio

O destino, caprichoso como é, decidiu mudar a vida de um casal simples, habituado ao pão contado e à vida discreta: ofereceu-lhes aquilo que muitos sonham e quase ninguém alcança – o primeiro prémio do Euromilhões.

O que poderia ser apenas uma história de riqueza fácil e ostentação transforma-se num conturbado enredo de segredos, lorotas e dissimulações. Cada justificação, cada meia palavra, cada aparência mantida é parte de um jogo delicado, em que a ganância alheia é sempre uma ameaça à espreita. Os protagonistas vão descobrindo que não é fácil ser rico às escondidas, ao mesmo tempo que vão mostrando que, por vezes, a maior riqueza não está nos números que brilham num talão premiado, mas na capacidade de reinventar a vida sem deixar rasto.

Este livro não é apenas a crónica de uma sorte improvável: é um retrato da condição humana, das máscaras que vestimos para proteger o que nos pertence, e das ironias que se podem esconder no diário de pessoas do nosso convívio. Um convite ao leitor para espreitar, com cumplicidade, os bastidores de uma vida dupla – simples por fora, literalmente rica por dentro.

Transformador Generativo Pré-treinado

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

A época das motorizadas


Nos idos anos setenta as motas de cinquenta centímetros cúbicos povoavam o mundo rural. Elas tornaram-se o principal veículo de mobilidade desses mundo, infestando-o de ruído, pó e velocidade.

Com elas alargou-se o raio da vida e passou a ser mais fácil ir à vila, à feira ou ao milheiral.

O primeiro dinheiro que um jovem juntava era para comprar uma Famel ou uma Casal, para poder ir mais além para trabalhar, comprar, foliar ou namorar. As raparigas e os estudantes, se queriam passear, eram penduras.

Este cenário motorizado proporcionou a popularização dum novo desporto: o motocross. 

O filme documenta um espontâneo desse divertimento, dessas motorizadas, desses jovens, desses lugares, desses anos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Ninguém me liga

 Ninguém me liga nada. Nem uma chamada, nem uma mensagem de SMS, no MSN,  no uótessape ou somente um láique na foto do prato de lentilhas que publiquei no feicebuque

Estou somente eu, olhando uma caixinha com um vidro fino, que outrora nunca sonhei ter e que não faço a mínima ideia de como funciona internamente. Deslizo o indicador sobre o que não me interessa, carrego no que me chama a atenção, uma foto duma amiga com fundo de mar, um vídeo de apanhados, o André Ventura  a arrasar um comuna,  uma frase dum poeta, um produto muito em conta para compra oneláine e porque não estou sempre nisto, desço as escadas para abrir a caixa de correio.

Nada. Não digo a fatura da água ou uma carta das finanças, mas ao menos um panfleto de aparelhos auditivos, um comunicado do presidente da câmara ou um desdobrável das Testemunhas de Jeová! Faz muitos anos que não recebo uma carta ou um postal dum amigo a dizer "espero que estejas bem que nós por cá todos estamos bem graças a Deus".

Ninguém me liga nada!  Nunca fui de igrejas, nem de partidos, nem de causas, teatros, futebóis ou associações! Não sou de livros, não percebo os escritores nem o que eles escrevem. Hoje em dia a música é só barulho, o cinema é só tiros e putedo, Cristinas Baiões Gouchas e Quitérios é só maricagem.

Família? Chega uma vez por ano no Natal! Falam, falam, falam e ninguém liga nada ao que eu digo.

Vou ao supermercado, três produtos para não ter de comprar saco. Um fingiu que não me viu, outra acenou-me apenas a cabeça, não encontro ninguém nem para um, nem para dois, nem para três dedos de conversa. O jovem da caixa disse-me com simpatia, nos devidos tempos, bom dia, quatros euros e quatro cêntimos, bom dia e obrigado.

 Ninguém me diz nada. Tocam à campainha: 

- Era  só para lhe dizer que deixou o vidro do carro aberto!

- Só isso? E não me quer dizer mais nada? - digo para comigo enquanto digo "obrigado".

Sento-me e tento reanimar-me. Sinto-me jovem. Só me sinto bem ao telemóvel!


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Os livros não voam

Sempre simpatizei com ladrões de livros. Se um livro não é lido, mais vale que seja roubado.

Tendo passado um bom bocado de vivência, escorreita e banal, com a historieta doméstica do meu desaparecido berbequim Bosch, insisti no teste, mas agora com um livro.

O berbequim demorou três anos a desaparecer do muro de entrada do meu quintal, onde foi pousado. O livro, porém, pousei-o junto à vieira, cartão de visita da casa, e não sobreviveu lá três dias!

Dizem as línguas que comigo coabitam que já ninguém rouba livros; dizem que voou. Ora, é das leis da física que, se os porcos não voam, os livros também não; quando muito, podem-nos fazer voar.

Por outro lado, as leis da República proíbem a publicidade dissimulada. Mas o livro tem de vender!


sexta-feira, 17 de outubro de 2025

A cabeça do berbequim


Em 2022 publiquei aqui um texto com o título O teste do berbequim. Para quem não se quer dar ao trabalho de seguir a hiperligação para mais uma leitura, contarei, em resumo, que abandonei - pousei, coloquei - um berbequim avariado no muro de entrada do meu quintal, com três propósitos: testar se passavam ladrões à minha porta; testar se as pessoas me estimavam a ponto de me alertarem de que me tinha esquecido ali do berbequim; e testar se o conjunto - o muro de pedra antiga, a máquina de bricolage ao relento e a envolvente - poderia configurar uma instalação artística capaz de captar as sensibilidades de amigos que apreciam essas dimensões do visível.

Os meses passavam e ninguém me levava a peça, julgando-a funcional; ninguém me alertava para o suposto esquecimento da cabeça que ali a deixara; ninguém me dirigiu um comentário sobre o facto de o berbequim ficar ali mal ou ficar ali bem.

Até que, ao fim de três anos, o súbito desaparecimento do aparelho agitou o agregado familiar. Teria sido "o de mau aspeto" que deixara a última encomenda? O cão zarolho da vizinha, que o confundiu com presunto? Uma visita amiga que quis brincar e o levou para o seu muro, esperando que, quando eu lhe retribuísse a visita, nos ríssemos em coro da surpresa? Pensou-se em muitas hipóteses, mas, claro, sem dramatismos - já era tempo de acabar com a história que, de tantas vezes contada, já perdera a graça.

Eis senão quando, e apesar da dieta, não resistindo ao convite do meu vizinho Zé Luís para provar a sua água-pé nova, dou de caras com o Bosch verde, num novo poiso e numa nova morada.

- Então, porque é que trouxeste o meu berbequim para aqui?
- Para ver se lhe conseguia tirar a cabeça, para aproveitar para outro!

A pureza e a autenticidade da resposta desarmaram-me. Eu nem sabia que os berbequins tinham cabeça! Nada do que era previsto aconteceu e a peça teve o seu melhor destino: foi parar às mãos de alguém que ainda lhe poderá dar algum proveito.

Mesmo que acabe por permanecer mais anos do que no muro, tenho de reconhecer que, como instalação, está muitos pontos acima daquela que ousei criar. 

(Listagem: berbequim Bosh, pedaço de sabão azul, tábua de cozinha, esparavel, isqueiro, lanterna, sobre prateleira de mármore de Estremoz e cobertura de duas águas em chapa da sucata.)


sábado, 11 de outubro de 2025

Porque ninguém se preocupou com as maças!


- Filho, se tiveres fome, podes roubar fruta, mas nunca roubes uvas, porque dão muito trabalho e são para fazer vinho!

E nós andávamos por lá, ao Deus dará, saltando regatos, espreitando ninhos, descobrindo buracos e paladares dos vales. Qualidades de maçãs não tinham conto: de três ao prato, de inverno, do pipo, de esmolfe, bravas, verdeais, azedas, camoesas, reinetas, riscadinhas, eu sei lá! Golden? Isso é nome que se dê a uma maçã? Isso é uma apple!

A desertificação dos meios rurais, a praga dos incêndios e a sociedade do rentável acabaram com dezenas de espécies de macieiras. O desaparecimento de numerosas qualidades de maçã, que não se enquadraram na obrigatória cultura do pomar, de curas químicas e câmaras de frio, ou nas calibragens e brilhos comerciais, condenou-nos à nostalgia dos sabores.

Mas que prazer pode ter uma criança de hoje em roubar fruta se tem uma mãe que lhe descasca e parte em quatro a maçã Golden, e há na mesa da sala uma taça com fruta de plástico?

E assim chegámos aos tempos em que somos indiferentes a tudo menos à diferença.

Que se lixem as maçãs de antigamente e, se para vencer os mongóis for necessário o apocalipse nuclear, que venha ele e que a gente morra logo, para não ter de sofrer com ele. Seja como for, a morte é certa e, se já não pode haver maçãs com bicho, está tudo perdido.

Há meia dúzia de anos era assunto central a preservação do ambiente, a ecologia e o aquecimento global. Os governos da “Europa” rica, a reboque das opiniões públicas, anunciavam medidas, canalizavam milhões e prometiam um planeta verde sobre azul.

Num abrir e fechar de anos, as opiniões públicas, a reboque dos governos da pobre “Europa”, já se estão marimbando para o plástico, a poluição e o calor. Não faz sentido falar nisso em tempos de guerra, de fumo negro, de destroços e de enterros. Ah! E depois de 80 anos a dizer Nuclear Não, se tiver de ser, que experimentem lá essas bombas maravilhosas! Afinal de contas, Hiroshima e Nagasaki continuam a ser cidades, e os generais desse crime não perderam as  medalhas!

Que se lixem as maçãs de antigamente e, se para vencer os mongóis for necessário o apocalipse nuclear, que venha ele e que a gente morra logo, para não ter de sofrer com ele. Seja como for, a morte é certa e, se já não pode haver maçãs com bicho, está tudo perdido. (Este parágrafo foi propositadamente repetido.)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Trumpanalho para não dizer outra coisa.

Os políticos das passadeiras made in EU, o Pastel de Belém, o Bola de Berlim, o que se engravata à grande e à francesa no Eliseu, os opinadores de circunstância ou de profissão e a sempre chamada opinião pública, tremem entre as pernas porque há um novo ator na Casa Blanca, um energúmeno que confunde o Pentágono com a estrela hexagonal, tão perigoso que é capaz de mandar incendiar Roma e o mundo. 

Mas se toda esta gente sente esse perigo, porque é que se entusiasma sempre que ele saca do poderio militar para atacar ou ameaçar algum país ou pessoa de nome maior tida como pagã? 

- Venezuela? Dá-lhes! Irão? Dá-lhes! Palestina? Dá-lhes! Rússia? Isso é que era! Que seja! Ficaremos então todos unidos à volta de Trump na solução final!

O desenho do figurão tem tal sucesso que, em todas as chamadas democracias, alguém se encarrega de carregar, alimentar e engordar o seu trumpezinho. Eis ao que chegámos: a esperança para o mundo está em Trump e em Portugal está no Andrézinho.

Últimas notícias:  Trump consegue a paz entre a Palestina e Israel, o mundo felicita Trump - Trump, Trump, Trump, Nobel da Paz.

Só falta mesmo ouvir o meu vizinho a dizer-me que, no domingo, vai votar em André Ventura porque viu num cartaz que ele é candidato aqui na terra.

(Legenda: Deus existe e eles viram-no)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A sorte é sempre oportuna


Cajó sempre brilhou na sorte.

A primeira vez que me pediu favores foi quando nos estávamos a preparar para a oral de Português do 7.º ano do liceu. Não sabia nada; só tive tempo para lhe explicar a Proposição do primeiro ao último verso, quando era certo que Camões poderia ser questão — desde o Concílio ao soneto do “fogo sem se ver”. Fui o primeiro a prestar prova e espalhei-me completamente com o Adamastor, mas acabei por passar. Cajó foi aprovado com distinção. À saída, só tive uma palavra para ele: cabrão!

Aprovados, e porque era chegada a idade de passar uma noite em Lisboa para estudar a cidade, juntámo-nos ao Joca, que tinha sido dispensado da oral e tinha uns tios emigrantes, proprietários de uma casa na capital onde poderíamos pernoitar.

Na festa de 8 de setembro, apresentei-lhe a Jaqueline, filha de vizinhos emigrantes em Champigny. Cajó conseguiu passar-lhe a ideia de que percebia alguma coisa de francês, respondendo a tudo com “ça fait rien”, incluindo quando ela revelou que era prima do Joca.

Jaqueline disse:
— Amanhã vou para Lisboa, os meus pais têm lá um apartamento!

Cajó aproveitou a oportunidade, encaminhou a conversa e vestiu-se de vidente. Começou a descrever, com surpreendente pormenor, entradas, escadas, divisões, camas, quadros e azulejos, atirando a jovem, perplexa, para sentimentos de admiração e encantamento.

A minha intervenção de desmascaramento precipitou o fim da nossa amizade. Contaram-me que, na recruta, ganhou fama porque, no primeiro disparo que fez, acertou no centro do alvo sem se servir da mira, passando a auxiliar do sargento na instrução de tiro.

Revi-o na praça esta semana, e cumprimentámo-nos com saudade da juventude. Disse-me ele:
— Naquela noite fiquei com conhecimentos de francês a dobrar! Ela era do quatre-vingt-quatorze!
— Continuas o mesmo!

Na praça, apareceu em campanha o candidato do partido sem vergonha, devidamente acompanhado por outros que também perderam a vergonha.

Cajó virou-lhes as costas e, sem se preocupar que o ouvissem, disse-me:
— Filho da puta!

Não me atingiu; de costas e com um só tiro, atingiu um bando inteiro: viraram-se todos.



sábado, 27 de setembro de 2025

Saiu-me pior que a encomenda

 Conversa no messenger:

- Como faço para encomendar o livro?

- Teré téu téu! 

- Teré téu téu.

- Por transferência, mbway, uma nota de 10 num envelope pelo correio ...

- Morada - xxxxxxxx

Nem queria acreditar! A 200 metros de mim em linha reta, um pequeno quintal, um muro alto, um  portão alto, uma casa entre casas, deixa-se ver apenas o telhado e uma janela de águas furtadas. Podia lá ir eu, diretamente, colocá-lo na caixa do correio. 

Mas não. Gosto dum pretexto para ir à vila, entrar na estação, tirar a senha, acenar a cabeça a um conhecido, fixar um rosto que ficará retido na memória e deixará de me ser cara estranha, apreciar os movimentos do espaço e do balcão, uma envia um vale de correio, um casal trata dos seus certificados de aforro, uma idosa levanta a reforma, um logista levanta uma encomenda. Topo os livros... 

- Não nos bastavam os supermercados e as feiras de artesanato a venderem livros, agora até os CTT já vendem livros! Os livros compram-se nas livrarias ou encomendam-se ao autor pelo correio!

Chega a minha vez. Levo sempre o dinheiro trocado, 56 cêntimos se for um, 1 euro e 12 cêntimos se forem dois, 1 euro e 68 cêntimos se forem três. O funcionário esboça um sorriso aliviado por não ter de fazer o troco.

Adelaide Silva. Há anos que a vejo sair do carro para fechar ou abrir o portão enquanto aguardo que a rua fique desimpedida, é então que tenho oportunidade de espreitar para o pátio e conhecer um rasgo do território que está para lá do muro alto. Entra novamente no carro, quase sempre desprezando-me  embora, algumas vezes, já sentada no habitáculo, me deixe dúvidas se ajeita o retrovisor ou me acena com um obrigado ou um desculpe.

Ou então embirra com a minha cara de homem que, desta forma, já lhe conhece bem os traços e os jeitos para a reconhecer, ao longe, no areal da Figueira. Os homens daqui são assim, muito machos, ler livros para eles é coisa de mulheres.  Elas leem mas não vão dirigir-se a uma cara que tão bem reconhecem pela caricatura da capa - comprava-lhe um livro mas ele é um trombudo!

Ora essa! Nas palavras cruzadas diz-se que "não fazem milagres" e eu convivo bem com isso! Aliás, nem sei bem onde enfiar o olhar, a próxima vez que vir a Adelaide.

Herdou a casa, já me tinham dito. Era bailarina, teve um entorse ou as pernas não davam mais e veio refugiar-se aqui entre muros. Sabe-se que quando se ausenta, deixa o portão fechado a cadeado e vai a Lisboa para se atualizar, cuidar-se ou passear.

Deve ler muito para, não sei porque meandros, me encomendar um "homem". Duvido que sonhe que vivemos a 200 metros um do outro em linha reta. Desvendar a coincidência, tal como desenvolvermos conversa, seria embaraçoso. Por isso, de meu preceito, escolhi o caminho mais fácil, fui aos correios à vila para enviar um "homem" para uma vizinha. 

10 euros, incluindo 56 cêntimos, mais gasolina e envelope com remetente para devolução em caso de problemas com o destinatário. Estraguei tudo! Ontem abri a caixa de correio e tinha um bilhete: 

"Gostei muito! Gostaria de trocar umas palavras consigo sobre o homem que me persegue. Toque na sineta que está ao lado do portão."

E agora?


 

domingo, 21 de setembro de 2025

34- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

Isto cheira-me a epílogo! Será?

- Obrigado Tintaine, ainda bem que me fazes essas pergunta. 

Sim, acabou. Tudo se precipitou no último capítulo: as personagens pareciam implorar que fossem libertadas da história para viverem a sua vida em paz, o autor interrogava-se no "vale a pena?", a pena começou a estender tudo o que lhe sobrava de ideia, os acontecimentos começaram a suceder-se com extrema rapidez e zás - Fim, Epílogo, Acabou ou como queiramos dizer.

Tinha previsto que o último número do folhetim, fazendo justiça à intenção inicial, tivesse, mais ou menos, o conteúdo que agora teço, mas confesso que se não fosses tu, Tintaine, já não me punha ao teclado.

Agora, entrámos na fase em que os carateres foram copiados para um documento word, e tudo vai ser cozinhado para ser servido como livro. Vão ser retocadas e enriquecidas as personagens, vai ser verificada a coerência do argumento, acrescentam-se reflexões, pensamentos e ideias, enfim, lá para verão, haja saúde, espero ter no prelo mais um objeto livro de papel.

Se para além de ti, alguém deu pelo fim e não se manifestou, é uma pena porque é sempre bom saber que anda alguém do outro lado. Se foste só tu, também valeu a pena. Seguido ou não, tenho sido compensado pelas vendas em papel que, embora poucas, me deixam satisfeito e motivado a continuar.

Vou continuar por aqui. Abraço.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Conversa de teimosos

- Segunda feira vim ali à farmácia, estava fechada e pensei vir aqui, mas olhei e também estava fechado por ser segunda feira.

- Não, estava aberto.

- Mas olhe que eu vi a porta fechada.

- Deve ter reparado mal porque estava aberta.

- Olhe dê-me mas é uma imperial!... Mas você não fecha à segunda feira?

- Não, fecho ao domingo.

- Mas dantes fechava à segunda feira!?...

- Não, sempre fechei ao domingo.

- Ia dizer que tenho quase a certeza que já estive aqui ao domingo.

- Está enganado, provavelmente era segunda feira.

- E não houve uma altura em que isto estava fechado à segunda feira?

- Não, meu amigo, já lhe disse, que o dia de folga desta casa sempre foi ao domingo!

...

- Olhe, traga-me mas é outra imperial! Aquela que eu era para ter bebido na segunda feira!

- O senhor não costumava vir aqui com o Abílio?

- Qual Abílio?

- O senhor nunca esteve aqui com o Abílio?

- Deve estar a confundir-me porque eu não me dou com Abílio nenhum.

- Mas olhe que eu havia de dizer que já o vi aqui a beber umas imperiais com o Abílio.

- Não, não era eu, não tenho nenhum amigo com esse nome.

- Tem a certeza que nunca aqui entrou com o Abílio?

- Meu caro amigo, até lhe digo mais, eu não conheço ninguém que se chame Abílio!

- Que se chame não, mas que se chamava! Lembrei-me agora que na segunda feira estive isto fechado um bocado para ir ao funeral do Abílio da farmácia.

- Ah  ele chamava-se Abílio?!

Bar na Ribeira Seca - S. Miguel